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sábado, 25 de julho de 2020

Apócrifos, pseudepígrafos e pseudonímicos



por:
José Augusto de Oliveira Maia
25.07.2020


INTRODUÇÃO

Este texto tem por objetivo tratar, do ponto de vista teológico, sobre o que são textos apócrifos, pseudoepígrafos e peseudonímicos; sobre o surgimento de apócrifos no Antigo Testamento (AT) e Novo Testamento (NT) na Bíblia; e destacar, ainda que sucintamente, a importância do processo canônico do Novo Testamento.

DEFININDO

A definição do exato significado dos termos "apócrifo", "pseudepígrafo" e "pseudonímico" parece, pelas leituras que fiz para redação deste artigo, muito complexa para discutirmos aqui; dessa forma, apresentarei os conceitos de uma forma mais genérica, apenas o suficiente para atender os objetivos deste artigo.

O termo "pseudonímico", de acordo com o dicionário eletrônico "Michaelis on-line", está ligado à palavra "pseudonímia", que significa "Ocultação de autoria de obra literária ou artística, utilizando-se um nome falso"(1); ou seja, um texto, um livro pseudonímico é um texto cujo nome do real autor foi substituído por um outro, que inclusive, pode ser reconhecido e famoso, recurso utilizado para dar ao texto confiabilidade, respeitabilidade e autoridade.

O termo "pseudepígrafo", ainda segundo a mesma fonte, aplica-se a textos bíblicos cujo título ou o nome do autor são considerados falsos(1); a mesma designação encontramos no livro "Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia", organizado por Eduardo de Proença e publicado pela editora Fonte Editorial(2).

Por sua vez, o termo "apócrifo" aparece no Michaelis como "texto religioso que carece de autoridade canônica"(1), ou seja, um texto não reconhecido como fazendo parte oficialmente do cânon da Bíblia, a lista de textos que compõem o AT e o NT. Por outro lado, D. H. Wallace define o sentido do termo como sendo "'as coisas ocultas', embora não haja nenhum sentido rigoroso no qual estes livros estejam ocultos (...) no sentido mais amplo, a palavra refere-se a qualquer trecho extracanônico."(3); é neste último sentido que usaremos o termo neste artigo.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Sobre os livros apócrifos do AT, originalmente eles não faziam parte dos livros aceitos pela comunidade judaica, ainda nos tempos anteriores a Cristo, em sua língua original, o hebraico; os textos assim designados pelos judeus passaram a ser incluídos nessa relação de livros a partir da versão grega do AT., chamada Septuaginta, como um acréscimo. 

Já nos tempos após o ministério terreno de Jesus Cristo, a partir do século II, alguns textos começaram a aparecer entre as comunidades cristãs, além daqueles textos que já existiam desde o século I, escritos pelos apóstolos de Cristo ou por alguém próximo a eles; possivelmente, dois motivos estão por trás do surgimento destes novos textos:

a) curiosidades sobre a infância e juventude de Jesus e sobre a pessoa dos apóstolos

b) falsos mestres querendo impor seus ensinamentos à comunidade cristã, valendo-se dos nomes dos apóstolos como autores dos textos, conferindo-lhes uma suposta autoridade apostólica

A forma literária destes textos é semelhante à dos textos do NT, sejam evangelhos, cartas, atos (como Atos dos Apóstolos) e apocalipses; no entanto, a qualidade dos textos é sofrível; vale aqui a oportunidade de destacarmos o comentário de H. F. Vos:

"Tendências heréticas, crenças e superstições estão escritas de modo marcante nestas obras. Pode-se discernir que os ensinamentos sobre a graça ficam para trás, havendo uma ascensão correspondente do legalismo, uma crescente veneração por Maria e um aumento no valor dos sacramentos. Além disso, um estudo destas obras apócrifas demostrará a superioridade dos livros do NT, tanto no conteúdo quanto na forma, e aumentará nosso respeito para com o cânon e para com a validez do processo canônico."

Dentre aqueles falsos mestres do século II, vale destacar um grupo especial que eram os gnósticos; havia várias correntes de pensamento entre os gnósticos, de forma que é difícil uma definição resumida e precisa sobre o grupo; mas alguns de seus ensinos fundamentais e mais populares eram francamente opostos à fé cristã, dos quais podemos destacar(5):

i) toda a matéria é má, em oposição ao espírito, que é sempre bom

ii) o Ser Supremo não teria criado este mundo material, mas apenas um mundo espiritual; um ser espiritual inferior teria criado o mundo material, à revelia do Ser Supremo

iii) uma hierarquia de seres espirituais seria o elo de ligação entre o mundo material corrupto e o mundo espiritual puro

iv) um conhecimento espiritual é necessário para que nosso espírito seja salvo da matéria corrupta que o prende; este conhecimento especial seria trazido por um mensageiro dentre os seres espirituais; daí o termo gnosticismo (grego gnosis = conhecimento ou ciência)

Havia textos divulgados pelos gnósticos como supostamente de autoria dos apóstolos; um texto que tive a oportunidade de ler é o Evangelho segundo Felipe, do qual reproduzo alguns trechos aqui(6).

"A luz e as trevas, a vida e a morte, os da direita e os da esquerda são irmãos entre si, sendo impossível separar uns dos outros. Por isso nem os bons são bons, nem os maus são maus, nem a vida é vida, nem a morte é morte. Assim é que cada um virá a dissolver-se em sua própria origem desde o princípio; mas os que estão além do mundo são indissolúveis e eternos." (mas compare com Mateus 25:31 - 33)

"O mundo foi criado por culpa de uma transgressão, pois aquele que o criou queria fazê-lo imperecível e imortal mas caiu e não pôde realizar suas aspirações. De fato não havia incorruptibilidade nem para o mundo nem para quem o havia criado, já que incorruptíveis não são as coisas, mas os filhos, e nenhuma coisa poderá ser perdurável a não ser que se faça filho, pois como poderá dar quem não está com disposição para receber?" (isso dá um nó no cérebro!)

"Quem recebeu a faculdade de criar é uma criatura; quem recebeu a de engendrar é um engendrado. Quem cria não pode engendrar, quem engendra não pode criar. Costuma dizer-se que 'quem cria engendra', mas o que engendra é uma criatura." (notem a contradição evidente!)

Pelos exemplos acima, acredito que o leitor e a leitora irão perceber por quê razão textos como este jamais poderia fazer parte do Novo Testamento; com a licença de vocês, digo que a comunidade cristã dos primeiros séculos fez muito bem em rejeitar este lixo!

Com o tempo, estudiosos cristãos da época foram criando listas dos textos que eram aceitos de forma geral pelas comunidades cristãs em seus cultos, como Orígenes de Alexandria (185 - 254), Eusébio de Cesareia (265 - 339), como forma de buscar uma definição dos textos que eram aceitos como canônicos, e rejeitar os que não poderiam receber esse reconhecimento; finalmente, em 367, o bispo Atanásio (295 - 373), da igreja de Alexandria, em sua Carta de Páscoa, relacionou os textos que até hoje são incluídos no NT. Já no ano 397, o Sínodo de Cartago definiu o cânon do NT como temos hoje, mas reconheceu os apócrifos do AT como próprios para leitura, apesar da resistência de Jerônimo (340 - 420), presbítero da cidade de Antioquia e organizador da versão em latim da Bíblia.

Já no século XVI, o Concílio de Trento (1.548 - 1.563), organizado pela Igreja Católica, aceitou como canônicos os apócrifos do AT; mas de forma geral, os líderes da Reforma Religiosa do século XVI (Lutero, Calvino, Zwinglio e outros) rejeitaram o status canônico destes textos; algumas edições das Bíblias protestantes incluíram estes textos, embora ressalvando que não eram canônicos; a partir de 1.827, a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira passou a excluir os apócrifos de suas Bíblias(7).

LISTAS DOS APÓCRIFOS NO AT E DO NT

ANTIGO TESTAMENTO
   
III e VI Esdras
Tobias
Judite
Restante de Ester
Sabedoria de Salomão
Eclesiástico (ou Sabedoria de Jesus, filho de Siraque)
Baruque
Carta de Jeremias
Acréscimos a Daniel
Oração de Manassés
I e II Macabeus

NOVO TESTAMENTO

Proto-evangelho de Tiago
O evangelho de pseudo-Mateus
O evangelho da natividade de Maria
A história de José, o carpinteiro
O evangelho segundo Tomé
O evangelho árabe da infância
O evangelho segundo Nicodemus
O evangelho segundo Felipe
O evangelho dos egípcios
Atos de Paulo
Atos de Pedro
Atos de André
Atos de João
Atos de Tomé
Epístola dos Apóstolos
Epístola aos Laodicenses
III Coríntios
Cartas de Paulo a Sêneca
Apocalipse de Pedro
Apocalipse de Paulo


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(1) - www.michaelis.uol.com.br (acessado em 25.07.2020)

(2) - PROENÇA, Eduardo de (org.) "Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia", trad. Claudio J. A. Rorigues, editora Fonte Editorial, 2005, prefácio

(3) - WALLACE, D. H. in Elwell, Walter A. "Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã", trad. Gordon Chown, editora Vida Nova, 2009, vol.1 página 95

(4) - VOS, H. F. in Elwell, Walter A. "Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã", trad. Gordon Chown, editora Vida Nova, 2009, vol.1 página 97

(5) - MAIA, José Augusto de Oliveira "A Fé Cristã - sua história e seus ensinos", publicado por Clube de Autores, 2012, página 56  https://clubedeautores.com.br/livro/a-fe-crista

(6) - PROENÇA, Eduardo de (org.) "Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia", trad. Claudio J. A. Rorigues, editora Fonte Editorial, 2005, páginas 620, 631, 634

(7) - MAIA, José Augusto de Oliveira "Para você, que ainda não conhece a Bíblia", publicado por Clube de Autores, 2017, página 143; WALLACE, D. H. in Elwell, Walter A. "Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã", trad. Gordon Chown, editora Vida Nova, 2009, vol.1 páginas 95, 96 https://clubedeautores.com.br/livro/para-voce-que-ainda-nao-conhece-a-biblia


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

E se Isaque tivesse abençoado Esaú?


por:
José Augusto de Oliveira Maia
09.02.2020


Ouvi há poucos dias a questão, título deste artigo, ser formulada por um pastor: "E se Isaque tivesse abençoado Esaú?" O ponto que me preocupou não foi tanto a pergunta, mas a resposta, ainda que elaborada superficialmente, apresentada pelo pastor; e, segundo ele, se isso tivesse acontecido, Deus teria abençoado os descendentes de Esaú, e não a nação de Israel, descendentes de seu irmão, Jacó.

Confesso que fiquei horrorizado com essa resposta; e, profundamente entristecido com o erro doutrinário contido nela, decidi escrever este artigo, para deixar claro o que a Palavra de Deus ensina.

O contexto do nascimento de Esaú e Jacó

Em Gênesis 25:19 - 26, lemos a história da concepção e do nascimento de Esaú e Jacó; Rebeca, incomodada pela agitação constante entre as crianças ainda não nascidas, foi consultar o Senhor (v. 22); e a resposta de Deus, clara como água, foi que "o mais velho servirá ao mais novo" (v. 23).

Chegada a hora do parto, nasce o primeiro, o mais velho, que recebe o nome de Esaú, e depois seu irmão, mais novo, cujo nome ficou sendo Jacó (vs. 25 e 26).

Portanto, pelo relato acima, fica evidente que Deus de antemão decidira escolher Jacó, posteriormente designado por Deus como Israel (Gênesis 32:22 - 28), em lugar de Esaú, o filho mais velho, como herdeiro das promessas feitas a Abraão, seu avô (Gênesis 12:1 - 3; 13:14 - 17; 15:1 - 5), e continuador de sua descendência.

Com isto concordam as Escrituras, como encontramos em Malaquias 1:1 - 3, texto citado por Paulo em Romanos 9:11 - 13: "Amei Jacó, mas rejeitei Esaú".

Assim, o primeiro ponto a ressaltarmos aqui é que a escolha e a benção de Deus sobre Jacó em detrimento de Esaú dependeram exclusivamente da soberana vontade de Deus, e não de esforços ou esquemas humanos.

Isaque - o desejo de abençoar Esaú


Recorrendo ao teólogo F. F. Bruce em seu "Comentário Bíblico NVI"(1), encontramos a afirmação de que "as orientações de um moribundo tinham força de lei na cultura daqueles dias"; ainda segundo Bruce, o esquema planejado por Rebeca e executado por ela e Jacó recebeu como castigo o afastamento definitivo entre mãe e filho, os quais nunca mais se reencontraram.

Ainda recorrendo a outro comentarista, Derek Kidner(2) ressalta a responsabilidade de Isaque, mesmo sabedor do oráculo pré-natalício dos gêmeos em favor de Jacó, em tentar manter sua benção paternal sobre Esaú; de igual forma, tanto Rebeca quanto Jacó carregam sua parcela de culpa, adotando uma atitude desprovida de fé na promessa de Deus e de amor pelo patriarca; quanto a Esaú, que já vendera com juramento seu direito à primogenitura para Jacó (Gênesis 25:29 - 34), aceitou a proposta do pai, quebrando seu juramento.

De qualquer forma, embora o desejo do pai de abençoar o filho primogênito, conforme a tradição do patriarcado sob o qual a família vivia, fosse legítimo, devemos considerar que tanto Isaque quanto Rebeca conheciam há muitos anos a vontade expressa de Deus sobre o assunto, e a obediência humilde de Isaque tornaria desnecessária a armação de Rebeca; por outro lado, ressaltando o que já tratamos na primeira parte deste artigo, a vontade de Deus seria cumprida de qualquer forma.

Destacamos, portanto, como segundo ponto fundamental, que não foi o esquema armado por Rebeca, nem a oração de Isaque, que garantiram a benção divina sobre Jacó, o qual já contava com ela desde antes de seu nascimento. Porventura, teria Deus a necessidade de uma "ajudazinha" humana para cumprir qualquer um de seus propósitos? (Isaías 43:13)

Os planos de Deus não podem ser impedidos

Mas, e se Isaque houvesse feito, como planejara, a oração de benção sobre Esaú? O que aconteceria? A resposta, simples e clara, é que não aconteceria absolutamente nada.

Em primeiro lugar, e mais importante, Deus já havia determinado abençoar Jacó, e não Esaú, para dar continuidade à descendência de Abraão, de onde viria o Cristo, humanamente falando; Deus não mudaria seus propósitos, nem alteraria seus planos; se assim fosse, jamais poderíamos descansar na fidelidade de Deus (Malaquias 3:6).

Em segundo lugar, Deus não precisa do Homem para qualquer coisa que seja; ainda que Deus use as pessoas, como usou servos do passado como Moisés, Davi ou Jeremias, Ele se basta a si mesmo; assim, o esquema montado por Rebeca e executado por Jacó não teve qualquer influência para os planos de Deus; Ele havia escolhido Jacó, Sua benção estava com ele, e nada mudaria isso (Números 23:8, 19, 20).

E, em terceiro e último lugar, se Isaque houvesse abençoado Esaú, não seria a oração de benção que obrigaria Deus a mudar seus planos; pense que situação ridícula, Deus ter decidido antes do nascimento dos gêmeos abençoar Jacó, e depois ser pego totalmente de surpresa pela oração de Isaque, que O comprometeria a mudar Sua determinação, rejeitar Jacó e abençoar Esaú; este não seria o Deus da Bíblia.

A soberania de Deus é imutável; portanto, podemos declarar sem dúvida que a benção de Deus sobre Jacó não dependeu do esquema de Rebeca, nem seria afetada pela oração de Isaque, mas estava absolutamente determinada pelo propósito eterno de Deus (Salmo 33:10, 11).



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(1) - BRUCE, F. F. "Comentário Bíblico NVI" - tradução Valdemar Kroker - Editora Vida - 2ª edição, 2012 - página 139

(2) - KIDNER, Derek "Gênesis - introdução e comentário" - tradução Odayr Olivetti - Editora Vida Nova - 1ª edição, 1979; reimpressão, 2011 - página 144